terça-feira, 12 de junho de 2018

Invasão


   A Invasão                                  



   O sonho era leve, sentia-se  voando como num filme de Spielberg,  estava no ar, não tinha certeza, mas sabia que era como se estivesse flutuando, no alto ao som do “Tao de amor”.
   Para teorias psicanalíticas, os sonhos são importantes para entendimento psicológico, ajustes, freios necessários do caráter, ajuda no emocional. Esclarece sobre muitas coisas. Quem somos, quem podemos ser se aprendemos a dominar as nossas más tendências.  
 Qualquer sonho é importante, eles faziam parte do seu cotidiano noturno. Orientada pela psicologa,  há quatro anos que vem anotando os sonhos e compartilhando seus significados com a terapeuta. De qualquer  maneira o que quer que estivesse  sonhando era leve e agradável. Quando, ouviu uma música, e, ainda no sonho foi se transportando para a melodia. Diferente, não conseguia  reconhecer  aquela música. A melodia era dançante e a letra não conseguia discernir. Até que foi se tornando mais forte mas, mesmo assim, desconhecida.

   Acordou. O som parecia muito alto um rock desconhecido, uma boa batida mas estava  incomodando. Será porque ela não estava mais no mundo dos sonhos? Pensou: Uma serenata? A realidade. Na cidade grande as pessoas não fazem serenatas. Começou a ordenar os lugares prováveis de onde aquele som poderia vir, descartou os botecos pois perto de onde morava não haviam. O som era alto demais, era perto de casa. Acendeu a luz do abajur, olhou o relógio, uma hora da manhã. A música mudou, já não era mais desconhecida, tampouco agradável, é difícil achar alguma música boa quando se é acordado no meio da noite, num volume tão alto, e aquela nova música por si só  já era motivo de irritação na época do carnaval, imagine fora de época. Ficou deitada na cama esperando o sono voltar.
   
    Que pena que o tempo entre estar num sonho agradável e o acordar seja tão fugaz. Lembrou-se das serenatas que ouvira quando criança, endereçadas à irmã mais velha, músicas românticas, num volume razoável. Erasmo Carlos cantando, Sentado a beira do caminho”, Dio Come ti amo, Roberta e tantas outras, que davam prazer poder recordar-se da infância cheia de  cantoria  numa pequena cidade do interior. Era o passado.
    O lugar onde morava, subúrbio de cidade grande, um condomínio tranquilo, com poucas residências e seus vizinhos eram pessoas educadas, bem informadas e outros etcs. O pessoal que fez a opção de criar seus filhos mais entrosados com a natureza, onde pela manhã se acorda com o canto dos pássaros e se pode andar descalço, pescar siris e tomar banho de rio. Ali não era o interior, da sua infância onde, jovens varões esperavam as luzes da cidade se apagarem para se tornarem trovadores e agradarem as suas amadas. Onde ainda, mesmo com a nova iluminação da pública, em que as luzes das ruas continuam acesas noite adentro, alguns ainda continuam com os velhos costumes de pegarem galinhas nos quintais alheios, para depois comê-las assadas no meio da noite entre um bolero e uma balada. 

Olodum tá hippie, Olodum tá pop
Olodum tá reggae, Olodum tá rock
O Olodum pirou de vez

    Pediu a Deus que a livrasse daquele barulho. Já não tinha mais sono. Levantou-se, abriu a janela e viu que um vizinho de rua, fazia churrasco com amigos.
Naquela hora, quis ser, aquele tipo e pessoa que os outros chamam de chata, para poder chegar na casa daquele vizinho e pedir para abaixarem o som, mas sabia que não tomaria tal atitude. Saiu do quarto, foi espiar no quarto das crianças, mas nem precisou entrar, encontrou o mais velho na cozinha bebendo água.                                                                          
    - Mamãe! Onde é a festa?     
    - Na casa de Ronaldo, vá dormir tem de acordar cedo. Abriu a geladeira, encheu um copo de água e bebeu. Voltou paro o quarto. Deitada no escuro lembrou-se que, nas raras ocasiões em que recebiam amigos em casa, faziam questão de depois de determinado horário, ouvirem músicas suaves, ainda  assim com o volume baixo, nada que pudesse incomodar a vizinhança.

Requebra  requebra  requebra assim   
Pode falar pode rir de mim.(4vezes)                                                                                              Requebra até no chão
Embaixo, embaixo, embaixo  ôôô
Em cima em cima em cima em cima ôôô (bis)                                                                                        Vão lá mainha ( solo)   

    Além do volume alto, ainda faziam questão de repetir a música. E pensar que ela apenas queria poder dormir sossegada. Ouvia vozes falando alto, risadas. Porque seria que as pessoas não se dignavam a pensar no direito dos outros?  O silêncio é um direito básico da vida em sociedade. Mas a nossa parece sem noção.
Momentâneo silencio para a próxima. 

Vamos abrir a roda
Enlarguecer   ( bis)                                                                                                             
Tá ficando apertadinha, por favor
Abre a rodinha, por favor
Abre a rodinha, por favor
Abre a rodinha

    Mais uma vez, levantou-se da cama, saiu do quarto foi procurar um livro para ler, não estava interessada em duelos musicais mas, não conseguia dormir. Francamente, detestava aquele tipo de música, aquela não era hora para se tocar nada. Na sala o barulho era mais alto ainda do que no quarto, continuava a repetição, tinham de ouvir de novo, se é que se pode ouvir esse tipo de música. Pensou venenosa: realmente o gosto musical da terra está descendo a ladeira. 

Se o amor                                                                                                                                          
Ficará na lembrança  
Desse povo trazido da África.

    Essa veio com força, parecia um grito de vingança ritmado; vamos exaltar o povo guerreiro da África no carnaval.  
    - Prometo a mim mesma deixar a intolerância tomar conta do meu coração. Pensar que estou perdendo o meu precioso sono por causa disso? É demais! Só pode ser castigo. Pensou retornando à sua antiga mania de perseguição. Desiste. Não consegue ler nada mesmo. Levanta, vagueia pela casa, chega até a área de serviço e, grande é a sua surpresa quando percebe que ali, como é parte de trás da casa, o som é distante. Entra no quarto de empregada, fecha a porta, nada, nenhum som. Sai, vai até o banheiro e pega no armário um travesseiro fronha e lençóis, volta para o quarto vazio que só serve para guardar algumas coisas e que está relativamente limpo. Arruma a cama, fecha a porta e apaga a luz. Já não se ouve mais música alguma.
Silêncio.
Um cachorro latiu em algum lugar.
Um som natural, fazia parte da noite.
Fechou os olhos e tentou dormir. 

ô....ô...ô....ô....ô...ô....    
Cantar reggae todo dia                                                  
Pelas ruas  da Bahia

Continuou lá fora, inclemente.                                                                                                          
                                                                                                         
                                                          L. de Freitas, abril de 1992