A Invasão
O sonho era leve, sentia-se voando como num filme de Spielberg, estava no ar, não tinha certeza, mas sabia que
era como se estivesse flutuando, no alto ao som do “Tao de amor”.
Para teorias psicanalíticas, os sonhos são
importantes para entendimento psicológico, ajustes, freios necessários do
caráter, ajuda no emocional. Esclarece sobre muitas coisas. Quem somos, quem
podemos ser se aprendemos a dominar as nossas más tendências.
Qualquer sonho é importante, eles faziam parte
do seu cotidiano noturno. Orientada pela psicologa, há quatro anos que vem
anotando os sonhos e compartilhando seus significados com a terapeuta. De
qualquer maneira o que quer que
estivesse sonhando era leve e agradável.
Quando, ouviu uma música, e, ainda no sonho foi se transportando para a
melodia. Diferente, não conseguia
reconhecer aquela música. A
melodia era dançante e a letra não conseguia discernir. Até que foi se tornando
mais forte mas, mesmo assim, desconhecida.
Acordou. O som parecia muito alto um rock
desconhecido, uma boa batida mas estava
incomodando. Será porque ela não estava mais no mundo dos sonhos?
Pensou: Uma serenata? A realidade. Na cidade grande as pessoas não fazem
serenatas. Começou a ordenar os lugares prováveis de onde aquele som poderia
vir, descartou os botecos pois perto de onde morava não haviam. O som era alto
demais, era perto de casa. Acendeu a luz do abajur, olhou o relógio, uma hora
da manhã. A música mudou, já não era mais desconhecida, tampouco agradável, é
difícil achar alguma música boa quando se é acordado no meio da noite, num
volume tão alto, e aquela nova música por si só
já era motivo de irritação na época do carnaval, imagine fora de época.
Ficou deitada na cama esperando o sono voltar.
Que pena que o tempo entre estar num sonho
agradável e o acordar seja tão fugaz. Lembrou-se das serenatas que ouvira
quando criança, endereçadas à irmã mais velha, músicas românticas, num volume
razoável. Erasmo Carlos cantando, Sentado a beira do caminho”, Dio Come ti amo,
Roberta e tantas outras, que davam prazer poder recordar-se da infância cheia
de cantoria numa pequena cidade do interior. Era o
passado.
O lugar onde morava, subúrbio de cidade
grande, um condomínio tranquilo, com poucas residências e seus vizinhos eram
pessoas educadas, bem informadas e outros etcs. O pessoal que fez a opção de
criar seus filhos mais entrosados com a natureza, onde pela manhã se acorda com
o canto dos pássaros e se pode andar descalço, pescar siris e tomar banho de
rio. Ali não era o interior, da sua infância onde, jovens varões esperavam as
luzes da cidade se apagarem para se tornarem trovadores e agradarem as suas
amadas. Onde ainda, mesmo com a nova iluminação da pública, em que as luzes das
ruas continuam acesas noite adentro, alguns ainda continuam com os velhos
costumes de pegarem galinhas nos quintais alheios, para depois comê-las assadas
no meio da noite entre um bolero e uma balada.
Olodum
tá hippie, Olodum tá pop
Olodum
tá reggae, Olodum tá rock
O
Olodum pirou de vez
Pediu a Deus que a livrasse daquele
barulho. Já não tinha mais sono. Levantou-se, abriu a janela e viu que um
vizinho de rua, fazia churrasco com amigos.
Naquela hora, quis ser, aquele tipo e pessoa
que os outros chamam de chata, para poder chegar na casa daquele vizinho e
pedir para abaixarem o som, mas sabia que não tomaria tal atitude. Saiu do
quarto, foi espiar no quarto das crianças, mas nem precisou entrar, encontrou o
mais velho na cozinha bebendo água.
- Mamãe! Onde é a festa?
- Na casa de Ronaldo, vá dormir tem de
acordar cedo. Abriu a geladeira, encheu um copo de água e bebeu. Voltou paro o
quarto. Deitada no escuro lembrou-se que, nas raras ocasiões em que recebiam
amigos em casa, faziam questão de depois de determinado horário, ouvirem músicas
suaves, ainda assim com o volume baixo,
nada que pudesse incomodar a vizinhança.
Requebra requebra
requebra assim
Pode falar pode rir de mim.(4vezes) Requebra até no chão
Pode falar pode rir de mim.(4vezes) Requebra até no chão
Embaixo,
embaixo, embaixo ôôô
Em cima em cima em cima em cima ôôô (bis) Vão lá mainha ( solo)
Em cima em cima em cima em cima ôôô (bis) Vão lá mainha ( solo)
Além do volume alto, ainda faziam questão
de repetir a música. E pensar que ela apenas queria poder dormir sossegada.
Ouvia vozes falando alto, risadas. Porque seria que as pessoas não se dignavam
a pensar no direito dos outros? O
silêncio é um direito básico da vida em sociedade. Mas a nossa parece sem noção.
Momentâneo
silencio para a próxima.
Vamos
abrir a roda
Enlarguecer ( bis)
Tá
ficando apertadinha, por favor
Abre
a rodinha, por favor
Abre
a rodinha, por favor
Abre
a rodinha
Mais uma vez, levantou-se da cama, saiu do
quarto foi procurar um livro para ler, não estava interessada em duelos
musicais mas, não conseguia dormir. Francamente, detestava aquele tipo de
música, aquela não era hora para se tocar nada. Na sala o barulho era mais alto
ainda do que no quarto, continuava a repetição, tinham de ouvir de novo, se é
que se pode ouvir esse tipo de música. Pensou venenosa: realmente o gosto
musical da terra está descendo a ladeira.
Se
o amor
Ficará
na lembrança
Desse povo trazido da África.
Essa veio com força, parecia um
grito de vingança ritmado; vamos exaltar o povo guerreiro da África no carnaval.
- Prometo a mim mesma deixar a intolerância
tomar conta do meu coração. Pensar que estou perdendo o meu precioso sono por
causa disso? É demais! Só pode ser castigo. Pensou retornando à sua antiga
mania de perseguição. Desiste. Não consegue ler nada mesmo. Levanta, vagueia
pela casa, chega até a área de serviço e, grande é a sua surpresa quando
percebe que ali, como é parte de trás da casa, o som é distante. Entra no
quarto de empregada, fecha a porta, nada, nenhum som. Sai, vai até o banheiro e
pega no armário um travesseiro fronha e lençóis, volta para o quarto vazio que
só serve para guardar algumas coisas e que está relativamente limpo. Arruma a
cama, fecha a porta e apaga a luz. Já não se ouve mais música alguma.
Silêncio.
Um
cachorro latiu em algum lugar.
Um
som natural, fazia parte da noite.
Fechou
os olhos e tentou dormir.
ô....ô...ô....ô....ô...ô....
Cantar
reggae todo dia
Pelas ruas da Bahia
Continuou
lá fora, inclemente.
L. de Freitas, abril de 1992
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